1 de março de 2009

O princípio protetor-recebedor


Maurício Andrés Ribeiro (*)

Num contexto nacional e global de crescentes desigualdades econômicas, no qual ocorre a apropriação de recursos naturais cada vez mais concentrada, é crucial conceber e aplicar princípios de justiça ambiental. A economia ecológica, especialmente, pode beneficiar-se da aplicação de tais princípios para o desenvolvimento sustentável. Neste texto, desenvolvemos conceitos e mostramos seu uso prático e possibilidades virtuais de aplicação, em contextos nos quais exista vontade política e sensibilidade social para reduzir desigualdades e injustiças e construir um ambiente humano mais solidário.

O Princípio Protetor-Recebedor postula que aquele agente publico ou privado que protege um bem natural em benefício da comunidade deve receber uma compensação financeira como incentivo pelo serviço de proteção ambiental prestado. O Princípio Protetor-Recebedor incentiva economicamente quem protege uma área, deixando de utilizar seus recursos, estimulando assim a preservação.

Trata-se de um fundamento da ação ambiental que pode ser considerado o avesso do conhecido princípio usuário-pagador, que postula que aquele que usa um determinado recurso da natureza deve pagar por tal utilização.

Para que serve sua aplicação? Serve para implementar a justiça econômica, valorizando os serviços ambientais prestados generosamente por uma população ou sociedade, e remunerando economicamente essa prestação de serviços porque, se tem valor econômico, é justo que se receba por ela. Atualmente, no mundo, muitas sociedades prestam serviços ambientais gratuitos, ao preservarem áreas indígenas, parques, unidades de conservação, áreas de mananciais, sem entretanto receberem a justa remuneração por eles.

As aplicações do princípio protetor-recebedor e de suas variantes podem dar-se em muitas escalas. Na escala local, um exemplo adotado em alguns municípios é a redução das alíquotas de Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU - para os cidadãos que mantém áreas verdes protegidas em suas propriedades. Trata-se de aplicar o princípio protetor-não pagador. Aqui, ressalta o exemplo de Curitiba, que ofereceu tal incentivo para aquelas áreas que sejam cadastradas e reconhecidas pela prefeitura como áreas verdes privadas.

Outro exemplo é o das Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs), que isentam seus proprietários do ônus representado pelo Imposto Territorial Rural- ITR , fato que tem estimulado os donos de terras com sensibilidade ecológica a transformarem suas propriedades em RPPNs.

Na escala estadual, a legislação do ICMS ecológico adotada em alguns estados brasileiros - Minas Gerais, Paraná, Roraima - utiliza o princípio protetor-recebedor. Em Minas Gerais, em 1996, cerca de 100 municípios se beneficiaram do ICMS ecológico verde, porque tinham parques e áreas de preservação. Em 1997, esse numero cresceu para 130 e ele continua a crescer, porque o incentivo econômico estimulou o investimento na criação de áreas de preservação, na proteção de mananciais de águas e de parques.

Na escala federal, existem sinais de sensibilidade por parte do Congresso Nacional para com a adoção de incentivos econômicos para aqueles que protegem áreas verdes. Assim, há projetos de lei em tramitação na Câmara e no Senado, que criam reserva do Fundo de Participação dos Estados - FPE - e do Fundo de Participação dos Municípios - FPM - para estados que abrigarem unidades de conservação da natureza e terras indígenas demarcadas. Os projetos propõem incentivo econômico para a proteção ambiental, instrumento eficaz para dar prioridade a esse tema.

O princípio protetor-recebedor, virtualmente, poderia aplicar-se em escala internacional. A proteção da Amazônia e de sua biodiversidade podem ser consideradas como prestação de serviços ambientais, garantindo para a comunidade internacional a proteção contra os desequilíbrios climáticos e o acesso a bens derivados da natureza que causariam um grande prejuízo se deixassem de existir ou caso tais desequilíbrios se agravassem. Os países, estados e municípios da bacia Amazônica deveriam, portanto, receber compensações econômicas por tal serviço de proteção de interesse global, evitando sua degradação. Esta é uma luta justa para todos aqueles que vierem a se privar do uso livre dos recursos ambientais, já que atualmente o mercado não remunera o manejo sustentável de tais recursos.

Uma variação do princípio protetor recebedor é o do não poluidor-recebedor, pelo qual todo agente publico que deixar de poluir deve receber um incentivo ou prêmio por essa atitude, diferenciando-se daqueles agentes que ainda continuem a poluir o ambiente. Assim, os limpos deixam de pagar pelos poluidores, caracterizando medida de justiça social e econômica. Trata-se do inverso do princípio mais conhecido, do poluidor-pagador, que imputa custos e atribui ao poluidor a responsabilidade pelas despesas para que o meio ambiente permaneça em condições adequadas e que postula, ainda, que o responsável original pelo prejuízo ambiental deve arcar com a compensação por tal dano.

Aqueles que limpam, recebem, aqueles que permanecem sujando o ambiente, perdem dinheiro para os que limpam. As municipalidades que não investem em saneamento não recebem o recurso: trata-se do princípio poluidor-não recebedor.

A gestão ambiental nos países em que existe abundância de recursos aplica o princípio usuário-poluidor-pagador, que ainda não é usual em países com escassez financeira. Em situações de pobreza, é preciso virar pelo avesso aquele conceito e aplicar os princípios protetor-recebedor e não poluidor-recebedor, que fundamentam esse tipo de incentivos e mostram-se eficazes na realidade concreta de sociedades que precisam resolver as carências de infra-estrutura de saneamento. Em contextos de escassez de recursos financeiros, a disposição a receber é mais alta do que a disposição a pagar. Para induzir mudanças de comportamento nos seres humanos e instituições, são importantes a educação e a autodisciplina; a coerção, com aplicação de sanções pelo descumprimento de normas; o sistema de preços, que incorpore custos ambientais integrais; a premiação e o incentivo social positivo que ajudam a motivar comportamentos ecologicamente adequados.

A aplicação desse princípio foi realizada pela lei que redistribui o ICMS - imposto sobre circulação de mercadorias no estado de Minas Gerais. Deram-se incentivos econômicos para governos locais investirem em disposição de resíduos sólidos e em estações de tratamento de esgoto. Municípios que operem estações de tratamento de esgoto para no mínimo 50% de sua população urbana, ou ao menos 70% da população urbana com sistema adequado de disposição de resíduos sólidos, recebem uma parcela maior do ICMS. Este incentivo econômico é combinado com o sistema de licenciamento: para obtê-lo, os municípios precisam ter a licença ambiental das estações de tratamento, usinas de compostagem ou aterros sanitários.

A falta de saneamento e de tratamento de efluentes urbanos constitui a maior fonte de poluição das águas no Brasil. Muitas cidades tem coleta de esgoto e de lixo, mas faltam locais adequados de disposição final, aterros sanitários ou estações de tratamento de esgotos. Dos 853 municípios de Minas Gerais, a maior parte tem até 10000 habitantes. Os novos prefeitos se empossaram em 1997, para um mandato de 4 anos. Depois da lei do ICMS ecológico, em 1995, eles começaram a licenciar projetos para a disposição final de lixo e esgoto. O ICMS ecológico marrom - que cuida da prevenção e correção das poluições ambientais - começou com nenhum município se beneficiando em 1996; um município em 97 e esse numero passou para 6 em 98, atestando o estimulo positivo da lei. Esses municípios incluem metrópoles e grandes cidades, com cerca de 20% da população do Estado: Minas Gerais tem 16 milhões de habitantes e, depois da lei do ICMS, cerca de 3 milhões passaram a ter disposição final adequada de lixo, com aterros sanitários e usinas de compostagem. Ao oferecer informação, incentivos econômicos e usando o sistema de licenciamento, em apenas 2 anos várias cidades de grande, médio e pequeno porte resolveram seus problemas de disposição final de lixo. Dezenas de municípios estão licenciando seus sistemas de disposição final de lixo ou passaram a investir em disposição final com seus recursos próprios, na expectativa de rápido retorno por meio do ICMS.

O ICMS ecológico é um instrumento de indução pelo nível mais alto de governo. É oferecido pelo estado aos governos locais, como um incentivo seletivo positivo, e constitui também uma regulação não coercitiva. Ele produz resultados melhores e mais rápidos do que se o estado meramente aplicasse os instrumentos tradicionais de comando e controle, penalizando os governos locais que não cumpram suas responsabilidades de tratar efluentes urbanos. O incentivo promove a competição entre municípios e valoriza o exemplo daqueles que alcançaram resultados. Para usufruírem dos benefícios do ICMS, os municípios precisam investir, fazer o dever de casa, agir tecnicamente, abandonar expectativas de conseguir recursos sem realizar previamente seu trabalho. Precisam dispor de pessoal técnico qualificado para elaborar projetos, implementá-los, colocar em funcionamento aterros sanitários, usinas de compostagem ou estações de tratamento de resíduos. As municipalidades que não investem em saneamento não recebem o recurso (trata-se do princípio do poluidor-não recebedor). Como existe falta de recursos, a perspectiva de receber receita extra é significativa para os municípios. O montante total, em 1998, para a variável ecológica, eqüivaleu a 1% da parcela total devida às municipalidades, ou cerca de R$14.000.000. O sucesso do incentivo levou à proposta de dobrar essa parcela para 2%, ou cerca de R$28 milhões por ano. Metade desse dinheiro compensa os municípios que criam e implementam parques e áreas protegidas ( incentivo à agenda verde, por meio do principio protetor-recebedor); a outra metade destina-se àqueles que investem em saneamento ( a agenda marrom premia por meio do principio não poluidor-recebedor). Depois de receber a licença ambiental para operar os aterros sanitários, usinas de lixo ou estação de tratamento de esgoto, os municípios começam a receber seu adicional de ICMS. Eles são autônomos no uso desse recurso para a destinação que prefiram dar, e muitos deles usam os recursos para resolver problemas de saneamento ou criar parques, de modo que cresça sua participação nessa receita.

À medida que o tempo passa, a cada ano, com mais municípios se beneficiando, a parte de cada um decrescerá, mas até então o incentivo seletivo terá alcançado seu objetivo, ajudando a promover o investimento em saneamento ambiental. Muitos municípios investem no saneamento para obter esta receita extra. Usualmente, é de um ano o prazo de retorno pelo investimento realizado e eles continuam a receber receitas nos anos seguintes.

Entre os fatores críticos que facilitaram a adoção dessa abordagem estiveram:

1. uma administração comprometida em reduzir desigualdades sociais e regionais entre regiões e cidades pobres e ricas;

2. um governo também interessado em reduzir a pressão demográfica sobre as grandes cidades e em promover as cidades de pequeno e médio porte;

3. um governo com sensibilidade ambiental e comprometido com a ecologização das políticas publicas, especialmente o saneamento e a saúde.

4. A existência de um conselho ativo - o Conselho Estadual de Política Ambiental -COPAM - que emite licenças ambientais, é essencial para operacionalizar o ICMS ecológico marrom;

5. finalmente, é fundamental a existência de pessoal técnico nas instituições publicas, capaz de formular e implementar a engenharia técnica legal da lei e seus regulamentos.

Algumas condições são, também, necessárias para implementar essa abordagem:

a) deve haver uma estrutura fiscal que permita essa flexibilidade;

b) o sistema de licenciamento ambiental deve ter credibilidade, tal como o do COPAM.

No âmbito federal, os projetos de lei no Congresso Nacional que criam reservas no Fundo de Participação dos Estados e no Fundo de Participação dos Municípios, abrem a perspectiva virtual de se estender tal incentivo à agenda marrom, beneficiando os não poluidores, a exemplo de projeto do ICMS ecológico adotado em Minas Gerais. Tal abertura seria extremamente positiva para colocar na pauta de prioridades de governos estaduais e municipais, o investimento nas graves questões de saneamento ambiental, especialmente na disposição final de lixo e de esgoto. Uma parcela do benefício se estenderia, proporcionalmente, aos estados que tenham parcelas de sua população atendidas com sistemas de disposição final de lixo devidamente licenciados pelo órgão ambiental competente.

A principal tarefa da gestão ambiental deixou de ser o combate ao desenvolvimento selvagem, e tornou-se o fomento ao desenvolvimento sustentável, que considera relações econômicas ao longo do tempo. Nesse contexto, os tradicionais instrumentos de gestão ambiental baseados no comando e controle, na fiscalização e licenciamento ambientais, são insuficientes para induzir novos comportamentos nos agentes econômicos. Eles precisam ser combinados com instrumentos econômicos, para induzir os empreendedores a adotarem práticas ambientalmente sustentáveis.

Embora teoricamente os instrumentos econômicos para a gestão ambiental sejam conhecidos no Brasil, na prática sua utilização ainda é incipiente. Isso se deve a vários motivos: em primeiro lugar, a aplicação efetiva de instrumentos econômicos depende de negociação política entre os atores sociais. No Brasil, é ainda extremamente baixo o grau de exigência social em relação a qualidade ambiental e os lobbies políticos a favor do controle econômico da qualidade ambiental não conseguiram conquistar espaço significativo. O caso solitário de aplicação do ICMS ecológico em alguns estados sofreu forte oposição política daqueles municípios que perderiam renda com a redistribuição da receita esse tributo. Entretanto, não significou um pagamento a mais, sendo uma simples redistribuição com critérios indutores e entre eles o critério ecológico. Assim, foi implementado, com bons resultados, para incentivar a proteção de áreas verdes e para impulsionar o investimento em saneamento, lixo e esgoto.

A vontade política para se aplicarem instrumentos econômicos a partir do princípio protetor-recebedor é um pré-requisito. A sensibilidade política e social para com o tema ambiental cria um clima favorável à adoção de tais instrumentos. Entretanto, tal predisposição política favorável não é condição suficiente caso não se crie e consolide a base de informação técnica consistente, capaz de dar confiabilidade às propostas e evitar que os atores públicos desconfiem da veracidade dos dados e quantificações sobre os valores a serem distribuídos. A criação e existência de cadastros atualizados e confiáveis de áreas protegidas, unidades de conservação, áreas verdes que mereçam serem remuneradas é uma condição fundamental. A adoção de instrumentos econômicos exige uma base de informações ambientais de boa qualidade, que permita quantificar as questões e distribuir os ônus ou os benefícios econômicos. O uso de instrumentos baseados no mercado demanda infra-estrutura de produção e disseminação de informações. Exige que se conheça a qualidade ambiental, as fontes que a poluem, os efeitos da poluição, para que se possa medir os custos econômicos e avaliar as alternativas de controle e seus custos, bem como a relação custo-benefício. Esta base de informação de qualidade não existe no Brasil, onde são deficientes os cadastros de áreas protegidas, os monitoramentos de qualidade ambiental, e também os relatórios de emissão de poluentes. Estes dados técnicos são básicos para se calcularem os valores econômicos que deverão ser recebidos ou pagos pelos atores sociais e econômicos.

É preciso fazer uso combinado dos instrumentos de gestão ambiental, adaptado a cada caso. Assim, por exemplo, o ICMS ecológico em Minas Gerais utilizou um instrumento econômico combinado com um instrumento de comando e controle: o licenciamento ambiental dos aterros sanitários, usinas de lixo e estações de tratamento de esgoto, foi o modo de operacionalizá-lo. A perícia no manejo dos instrumentos de licenciamento, monitoramento, educação e, também, dos instrumentos econômicos é essencial para que eles tenham bons resultados.

A destinação de recursos tributários como forma de induzir políticas publicas, combinada com a reforma tributária ecológica - que onere o uso de recursos naturais tais como água e florestas, e que desonere o trabalho, e associada ao orçamento participativo, no qual a destinação final dos recursos seja decidida com ampla participação social, pode ser crucial para viabilizar o desenvolvimento sustentável. A reforma tributária não se esgota na emenda constitucional em discussão no Congresso em 1999. Ao contrário, ela constitui apenas um ponto de partida. Há vasta possibilidade de ecologizar a legislação que os juristas chamam de infra-constitucional e este é um trabalho para muitos anos, que precisa envolver pesquisadores, ambientalistas, administradores públicos, técnicos governamentais das várias esferas federativas. Todo e qualquer imposto existente ou que venha a ser criado pode ser ecologizado. Somente assim poderá consolidar-se sistema tributário que favoreça o desenvolvimento sustentável em escala global e local. A mobilização da área econômica dos governos, a competência técnica, a engenharia jurídica, as assessorias nos parlamentos, tem papel relevante nesse projeto. É preciso por, já, mãos à obra, ajudando a projetar e a construir a sociedade sustentável, sem a qual o futuro estará prejudicado.

A aplicação de instrumentos econômicos de gestão pode ajudar a tornar mais justa a distribuição de custos e benefícios, evitando a externalização de custos e internalização de lucros pelas empresas, que caracterizaram o processo selvagem de crescimento. No desenvolvimento sustentável com a aplicação de instrumentos econômicos, meio ambiente é também questão de justiça social.

(*)Autor de ECOLOGIZAR, Pensando o Ambiente Humano, Editora Universa, Brasília, 2005.

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